25.9.23

Na encruzilhada, um desafortunado encontro.

Ao longe divisei o gemido dos seixos soltos, mastigados ao seu caminhar displicente. Era noite de lua negra, lua ausente, noite espessa. Caminhar pelo breu era como empurrar um cobertor com a cara e os pés temerários. O vulto nem sequer reduziu a passada, senhor de seu rumo. Pensei em salteadores, insones, atormentados, guardando ao sorrateiro desconhecido um juízo que forasteiros receberiam em qualquer vila poeirenta. Mas eu precisava me assegurar de sua natureza.

No escuro, atirei três pedras, uma após a outra.

A primeira para o ladrão, que toma para si o que não requer esforço nem astúcia.

A segunda para o oportunista, que rouba como o ladrão se puder e cujo ardil resume-se à circunstância, pois tampouco persevera.

A terceira atirei ao andarilho, a quem também nada pertence, e está sempre só de passagem, pois há tanto tempo está no caminho que este tornou-se seu lar.

Para meu espanto, o tipo não moveu uma fibra, não se esquivou nem foi atingido. Não devia ser nenhum dos três, admiti para mim mesmo. Por exclusão, provava-se parte do quarto grupo, cujo nome pouco se menciona na gesta e nas canções, pois raros são aqueles que lhes cruzaram os caminhos e ainda estão entre nós para testemunhá-lo.


21.9.23

Os links abertos da quimérica matina

Homens acordam para sua guerra,
e as carpideiras labutam nas coxias.
De bandeiras, aguaceiros e marias
Se alimentam os filhos desta terra.


tingido e opaco, de humores vagos e soturnos, segue o mar encapelado. esmaece o dia, na frincha que lhe resta, em derradeiro. cá comigo penso: não seria hora duns aromas austrais, dos chás de impérios orientais, do vinho das arábias? mal não faria, nenhum

18.9.23

Primeiro houve um tempo... depois o ralo o engoliu.

 Treze anos escorreram por entre os dedos que agora escrevem. Não se foram com as enchentes que ora assolam certas plagas em latitudes mais ao Sul: isso vem de muito antes, homeo-hipnoticamente. Treze vezes doze vezes trinta, e incontáveis horas de desventuras em série. Olhando para trás, o tempo se achata às minhas costas, encolhendo as memórias, apagando os rancores, amarelando até as pequenas graças. Nada que mereça ser recontado, pouco a confidenciar.

Mas não quero parecer indiferente, e com um pouco de boa-vontade dir-lhe-ei que angariei, ao menos, uma certeza crescente: nesse labirinto diuturno dos caminhos que raiam de Roma para o mundo - e na curva das linhas que se encontram no horizonte, do mundo de volta para a velha cidade -, mantermos os pés na estrada é o que nos garante a vida em progressão contínua, esse moto-perpétuo que gira as engrenagens dentro do peito, e nos carrega - ó ironia! - para novos solavancos. Mas Deus não joga dados, e o desconhecido para nós Lhe é completamente previsível - ainda que não o saibamos até o átimo seguinte a qualquer uma de nossas mais prosaicas escolhas.

Em cada nova curva, o padrão vai se formando: de déjà-vus e bugs na matrix a plágios, copycats e engenharias reversas, o mundo começa a parecer, mais e mais, uma caricatura de si mesmo. Como as piadas requentadas que atravessam os séculos, ou aquelas cascas secas de laranja que insistem em deixar sobre as pias de banheiro, exalando a verdade agridoce da decomposição que a tudo corrói, em seu devido tempo.

Acreditei que a escrita se burilaria, que aprendizados se acumulariam, que certezas se enraizariam - em mim. Guardei este momento futuro com um aviso para o porvir: "Lembrar de voltar aqui quando as paixões arrefecerem, e escrever seja tudo que me reste". Bem: as paixões se tornaram vícios, e a prosa esqueceu a poesia.

Lançarei ainda uma garrafa às águas, com o mapa do tesouro à vista. Meu bote, à esmo, há de ser arrastado até um vórtice oceânico, sem lanterna alguma, só lamuriosos afogados; mas a mensagem perdurará: um chamado à imaginação irreverente, ao delírio das quimeras, à espuma do tempo que tudo apaga, embala, compensa e consola.

4.9.10

Última chamada

Agora estou no quente seco da sala. Lá fora, um sol de Sierra Madre vai desvirtuando tudo. É tarde quase madrilenha, mas quero crer que nuvens galopantes surgirão do nada para refrescar esse braseiro sem basta, sem chega, desapiedado.

Dia que segue alto, delirante, febril mesmo e as cores e formas bailando sinuosas na evaporação dos humores da terra. Isso é o que sobra. ...E deixa estar, que vou 'gonzear' mais um pouco pela rede, antes de abandonar as virtualidades e correr pro feriado que já está na área, chamando pro ócio, pro talento nacional, pra exercitar a brasilidade.

Carnavalizem-se vocês também! Até os dias de branco.

30.4.10

Deveras...

Menos por você do que por mim, menos por eles do que pelos outros, quando eu e os outros não nos conhecemos e assim sem raízes e sem memória tudo fica mais fácil e ligeiro, eu aperto o botão que limpa e esclarece, que simplifica e arredonda, que torna límpido porque esvazia, já não é mais água e sim vazio, onde existia água existe apenas o azulejo frio agora, e cair já não parece boa idéia, e mergulhar se tornou um sonho distante e evanescente, remanescente, maledicente, onde não sei se se mente, ou apenas se esquece o que é importante pelas beiradas, e o que nos resta é a sensação de já ter visto, de já ter amado, de já ter respirado uns tantos cheiros, soçobrado o coração de respirações entrecortadas de expectativa, em dias idos, em invernos apagados, de sacolas plásticas esvoaçantes num balé moderno de renegada elegância, duas eternidades plásticas bailando num pé de vento para o enfoque preciso da câmera nova do menino solitário da janela em frente.

Eu tenho todas as respostas quando menos preciso delas, tenho o péssimo costume de olhar para trás quando você apenas olha para a frente e essa frente é além do que meus olhos são capazes de captar no horizonte disposto à minha nuca, porque ouço de todos aquilo que sempre soube de mim mesmo, mas que guardei no sótão ecoante de cantos empoeirados e displicentemente abandonado à própria sorte de ouvir a rotina da casa sem poder-lhe estender as mãos, sem poder tomar-lhe coisas, sem conspirar para que as tampas de caneta e os botões e as peças pequenas que crianças não deveriam colocar na boca, uma meia desparceirada e também uma bola de tênis e um clipe de papel e um olho de acrílico e um tufo de pelúcia se percam nas frinchas e frestas e frisos rangentes dessa pequena e modesta casa em um subúrbio metropolitano.
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...just someone playing hard.